segunda-feira, 31 de março de 2008

No fim de um mês quase sem pecar, Viagem a um Sarau do Passado, (com Inveja de então não ter estado lá) - Ensaio Sobre a Inveja - O que diria Freud?



E quando o pano baixava, mais cedo do que o previsto, o fundo lá fundo da sala acendia-se, mas não era a luz, não era intervalo, antes a celebração do momento mais negro, fizesse-se um minuto de escuridão, de silêncio não.
E quando o pano baixava, à altura dos nossos olhos, quando tapando-os, já nos podiam fitar, o fundo lá fundo da sala acendia-se, era um homem coberto de fogo, que silvava.
E quando o pano baixava, mas continuávamos a tocar, já só se ouvia “corja” e “degredo” e “vergonha” e “Bebêdos”, e continuava “corja” e “degredo” e “vergonha” e “Bebêdos”, mas só se ouvia o que continuávamos a tocar.
E quando o pano baixava, à altura das nossas solas, que quiséramos a sapatear, mas sOLÁ COPAR, então nós parávamos, que a luz que passava, sob o veludo rosado, não era das chamas, era das donzelas, a palpitar.
E o homem coberto de fogo já não silvava, mas não se apagara. Nunca tinha estado lá.

"L'Invidia", Giotto, Cappella degli Scrovegni - Padova

Depois do Tottenham, o Bayern - Um Adepto Comum, e Um que Hoje Até Só foi Ver o Espectáculo

"Falta! Não assinalou! E ãos do Braga, basta um encostinho! É sempre assim! Já no Domingo com o Setúbal foi igual! O Braga é sempre roubado! Os outros podem fazer tudo! O ano passado com o Tottenham, um golo em fora de jogo! No último minuto... E já há vinte anos foi assim!"

Só não sabemos se foi assim com os suecos do Hammarby (leia-se Abardyn). Porque essa noite, não foi noite de bola. Foi Noite de Digressão

Depois do Tottenham, o Bayern - Cinco Minutos

Cinco minutos. Corro as bilheteiras, enquanto se acende o ultimo cigarro. Com noventa minutos pela frente. E já só faltam cinco. Minutos. E um cigarro. Que já vai a meio. E um minuto e meio também.
Três minutos. Somos revistados. "Que bom", apetece-me sempre dizer, só para ouvir "Ah!Ah! Ah! Ah! Ah!". Não digo. Mas ouço na mesma, "Ah!Ah! Ah! Ah! Ah!"
Dois minutos.subimos as rampas avenidescas de acesso ao estadio. Na faixa de rodagem do lado, os alemães abrem a boca de espanto à Pedreira.
«Parece um navio!»
«Parece uma catedral!»
«parece uma nave espacial!ah!ah!ahah!ah!»
Um minuto. Um minuto! Um minuto e a escadaria toda para subir!
Trinta segundos! Excitação , adrenalina, coceguinhas na pila. Dez segundos! Expludo! Galgo os degraus quatro a quatro. Três, Dois, Um segundo! Agitam-se as faixas, bandeiras e cachecóis também.
Do patamar de acesso as bancadas, um olho na relva, um olho na escada. O chapéu surge no patamar ao tempo que os atletas. Entramos os dois.
Não se vai à bola sozinho.

Depois do Tottenham, o Bayern - Dois adeptos comuns

Vamos a par para o estadio. É assim que se vai.
Da Sé para Dume não há que enganar, é sempre a descer.
«São só dez minutos», diz quem sabe.
«Serão?» receia quem receia chegar atrasado. Só temos 15 para o apito inicial.
Somos dois adeptos, falamos de assuntos da bola.
«Da outra vez andei o dia todo, e andei uma semana a coxear. E agora parece-me que já estou a ficar meio quilhado!»
«Não há pressas», digo, sem acreditar.
Mas sigo ao ritmo da claudicaçao.
Da pausa para acender o cigarro. E, já agora, também páro para mijar.
E continuamos a par.
Um espera pelo outro. Ninguém vai à bola sozinho.
E em dez minutos chegamos.
«Os ingleses trouxeram mais», digo ao passar os primeiros, os últimos Bávaros, sobre outra noite de bola..
«E os suecos parece-me que também» - mas essa não era noite de bola- era noite de digressão.

quarta-feira, 19 de março de 2008

(Sobre a Ruína do Circo)

Os anões, vítimas de um receio exagerado para a sua condição física de anões, atacaram o Comedor de Fogo aos gritos.
- Diz qualquewr coisa, Comedor de Fogo, diz qualquer coisa!
O Comedor de Fogo mastigava fazendo um barulho a lenha queimada.
- Tu és o mais importante deste circo, diz qualquer coisa.
O Comedor de Fogo participava em todos os números que eram apresentados na psta do Circo Céus Americanos: acendia os arcos que os cães pequineses atravessavam arriscando o pêlo, os archotes que as Trapezistas usavam em "O Salto da Morte", os fundilhos dos Palhaços, quando ninguém se ria com os seus trambolhões, aterrorizava a Mulher Barbuda em "Os Pêlos da Rainha Ulalume", enfrentava "O Dragão Assassino Ataca Hércules", também enfrentava o Homem Mais Forte do Mundo, colaborava com o Ilusionista chamando a atenção do público, engolia vinte vezes seguidas quatroarchotes de vários tipos de chamas e acendia uma pira de lenha com três metros de altura, colocada a seis metros de distância com as suas chamas ferozes, terríveis, cheias do circense esplendor do fogo.
- Diz qualquer coisa, Comedor de Fogo, precisamos de comer.
- Quanto resta de Rum, Dom José?
- O suficiente para incendiares a cidade.
- Por mim, não há problema.

de "O Segredo da Trapezista", de Óscar Málaga Gallegos

segunda-feira, 10 de março de 2008

"Ai, Margarida"

Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
- Tirava os brincos do prego,
Casava c'um homem cego
E ia morar para a Estrela.

Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria tua mãe?
- (Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
Eque eras parvo também.

Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
No sentido de morrer?
- Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.

Ai, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
- Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.

Comunicado pelo Engenheiro Naval
Sr.Álvaro de Campos em estado
de inconsciência
alcoólica.
(1/10/1927)

sábado, 8 de março de 2008

Manifesto Contra a Inveja

A Vinicultuna não se importa de não ser a melhor.
A Vinicultuna não abate animais para fazer instrumentos musicais mágicos.
O Tuno da Vinicultuna gostaria muito de dar um beijinho na bochechinha inflada e cianosada de uma Deuzela.
O Tuno da Vinicultuna não teme ser esfolado porque tem uma capa negra de lã quentinha.
A Vinicultuna até nem se importa de ser a pior.
À noite, quando a Lua está alta, e todos menos as Musas estão a dormir, os Tunos da Vinicultuna fazem concertos extraordinários de Flauta de Pã Tocada às Avessas.
Os Tunos da Vinicultuna lamentam profundamente não ter orelhas de burro.

Mais do Mesmo - mas ainda pior


Certo dia, Atena, criou uma flauta dupla a partir dos ossos de um gamo, e decidiu apresentá-la durante o banquete dos deuses. A Música encheu a sala, mas, enquanto Atena tocava, Hera e Afrodite não deixavam de rir. Despeitada, Atena pegou na flauta, erefugiou-se nos bosques da Frígia. Sentada numa rocha à borda de água, reparou no seu reflexo enquanto tocava. A suas bochechas enchiam-se de ar e adquiriam uma tonalidade azul. Horrorizada com o ridículo, a deusa atirou para longe a flauta, e amaldiçoou-a e a quem quer que se apoderasse dela.
Quis o destino que por ali passase um Sátiro chamado Márcias, que encontraria a flauta esquecida nas ervas. Recolheu-a e logo a levou aos lábios. A flauta encantada começou a tocar por si antes ainda do primeiro sopro.
Márcias aproveitou-se do novo tesouro, para se exibir pelas aldeias e campos da Frígia, entretendo aqueles com quem se cruzava. O grau do seu sucesso e a qualidade do seu sopro era tal, que muitos lhe diziam que nem Apolo se lhe compararia. Insensatamente, Márcias não os desmentia.
Quando as notícias chegaram aos ouvidos de Apolo, este ofendeu-se, e desafiou o sátiro para uma competição musical, cujo vencedor poderia infligir qualquer punição ao derrotado.
Márcias iniciou o concurso, e o ar encheu-se com a alegria da sua flauta.
Quando Márcias terminou, Apolo fez chorar as cordas da sua lira, mas ninguém se deu por triste.
As Musas, incumbidas de decidir, escutaram intensamente, declarando o concurso empatado.
Apolo renovou o desafio. Desta feita tocariam com os instrumentos de pernas para o ar. Sem pensar, Márcias aceitou o repto, cego de confiança, que cedo se desvanesceu, ao perceber não ser possível emitir qualquer nota da boca da flauta.
Sem dificuldade, Apolo, inverteu a sua lira, e voltou a extrair dela uma melodia divina. As Musas não tiveram dificuldade em decidir por Apolo, que executaria de forma cruel, a punição do rival.
Márcias seria esfolado vivo, e a sua pele pregada ao tronco de um pinheiro.

"Flaying of Martias", de Tizziano - State Museum - Kromeriz

Sobre a Inveja


Pã, o deus pastor, e da natureza, vagabundeava pelos campos e florestas soprando a flauta que inventara e baptizara com o seu nome. Habituado ao efeito que o som doce produzia nas criaturas da terra, cresceu nele a ideia de que era o maior o músico entre deuses e mortais. Maior que o próprio Apolo, a quem se propôs bater em competição musical.
Apolo aceitou o desafio, pretendendo puni-lo pela arrogância. Perante a montanha Tmolus, os seguidores de Pã e Apolo perfilaram-se para os escutar. Entre os que acompanhava Pã contava-se Midas, Rei da Frígia.
Pã tocou primeiro. Da sua flauta de cana soprou um som selvagem, apelativo, que trouxe dos ramos mais altos das árvores os pássaros, do fundo dos troncos os esquilos, e as próprias árvores, curvaram-se como que querendo dançar. Os faunos, estouraram em gargalhadas, antecipando com júbilo, o triunfo de Pã..
Então Apolo assumiu. Carregava a sua lira dourada. Quando fez estremecer as cordas, soltou no ar uma música como nunca fora escutada por ouvidos mortais ou imortais. Nas profundezas do bosque os animaizinho petrificaram, as folhas das árvores pararam de rumorejar, a terra deixou de respirar, o ar de suspirar.Quando Apolo terminou, encheu o mundo de vazio.
Sem uma palavra, todos os espectadores cairam aos pés de Apolo, proclamando-o vencedor.Todos excepto Midas, que, sozinho, recusava-se a admitir a superioridade de Apolo sobre a música de Pã.
Apolo sentiu-se ofendido.
"Se as tuas orelhas são tão rudes, mortal, então que tomem umas forma mais adequada." E ao toque de Apolo, as orelhas de Midas alongaram-se, pontiagudas, e escureceram, peludas, transformando-se nas orelhas de um burro.
"Judgement of Midas", de Peter-Paul Rubens, Bruxelas