quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

A Propósito

"Frente à vitrina em cintilação de jóias, faiscante de luz e de espelhos, Fraülein, emplumada, com peles, olha sequiosa; a face branca, virginal, de olhar azul, está lívida, crua, na dureza da reverberação eléctrica. "Que sim, que vai, mas quer cear e uma blusa, pois outra não tem, além daquela, de seda, que lhe cobre os ombros nus sem camisa." E Fraülein, vem. Os asfaltos trepidam sob a eterna torrente dos taxes, dos omnibus, das carroças, dos trens; nos ares em trevas, com edifícios negros, altaneiros no céu constelado, vai um carnaval de luzes brancas, vermelhas, azúis, verdes, rubis que se apagam, se acendem, fantasistas, como pirilampos eléctricos. E a grande multidão passa, em silêncio, ora lívida nos fachos das vitrinas faiscantes, ora espectral e fantástica, nos intervalos em trevas. Surdo silêncio, confuso murmúrio, sonoridade solene de grande artéria nocturna. A torrente de táxis rola, sem cessar, viscosa, nos asfaltos elásticos, no ritmo do seu tumultuoso caos.
O restaurante faisca de luzes, pejado de multidão, na atmosfera viciada. Chocam pratos, tinem talheres, sob as ondas melancólicas de uma orquestra regida por Strauss; a um canto, um grupo de velhas, extáticas, secas como múmias, contempla fascinada o maestro famoso. Religioso silêncio respeita os ritmos melódicos. Fraülein, ceia, famélica, Fraülein devora. Fraülein aquece, com bifes, chouriços, frutas e doces, o corpo gelado de jejuns. Fraülein jovial, despe-se no quarto tépido, com ingenuidade cínica, num à vontade de hábito. E rola no leito, numa algazarra bárbara, nein, nein, nein...
Oh! mach! mach! mach!
E Fraülein fremente, insaciável, oh! mach! mach! mach!
Os músculos, tetanizados, do braço fatigado, não podem mais, desistem exaustos; e Fraülein, insaciável, não dorme, oh! mach! mach! mach!
E a madrugada vem: Fraülein, emplumada, de peliça, caminha ligeira, nas ruas solitárias, limpas, da linda Charlottenburg. E, ao despedir-se, num beijo, garota, sorri: mach! mach!"

de "Um Estio na Alemanha", de Abel Salazar

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