Abelardo, o Cavalo que Cala
Se alguém houve que tenha reparado nele, só pode ter sido um dos frequentadores mais antigos, dos tempos das reuniões do reviralho, e que ainda não perderam o hábito de pesquisar no Piolho a presença de discretos observadores.
Abelardo entrou discreto, de gabardine e óculos de sol, como só pode andar quem quer passar despercebido, e sentou-se num canto a ler o jornal, escondido no entalhe entre a coluna-mestra e a parede, no ponto-vácuo dos espelhos.
Portanto, não poderá sido a Vinicultuna a reparar nele, mas ele a reparar na Vinicultuna. Quantas vezes terá escutado os nossos ensaios? Já estaria lá quando preparávamos o Casamento do Velho, e depois saiu tudo ao contrário? Ou quando o Velho ainda era Novo? Mas nesse caso o Senhor Nogueira tê-lo-ia topado – que saudades de o ver a espreitar pelo espaço entre as revistas penduradas nas traseiras do quiosque do Senhor-Nogueira-Pai. Ter-se-á alguma vez sentido incomodado pela nossa presença? E se sim, como é que se terá dado a reviravolta da antipatia para a simpatia?
Certo é que já nos estudava há muito. E sem dúvida simpatizara connosco. De outra forma nunca teria quebrado o silêncio da forma que quebrou, no dia em que, sem reparar, nos havíamos sentado a seu lado, encurralando-o entre a harmónica-algazarra-em-preparação e o entalhe da coluna-mestra na parede, no ponto-vácuo dos espelhos. Simulando que precisava de se levantar, simulou que olhava o relógio e que ficava surpreendido com o mostrador, para poder simular que nos abordava para confirmar o atraso...
“Ó Crscalho...” - demonstrando a sua enorme categoria na atrapalhação com que se forçou a mal-disfarçar o palavrão - “...que horas são?”,- e na cortesia com que, denunciou a sua condição, pois que ao dirigir-nos a palavra pela primeira vez, retirou o chapéu que cobria sempre o cabeção.
E pela primeira vez o eco do brinde foi quebrado, pois que aos múltiplos “São as Horas que Eu quiser!”, alguém respondeu,
“Ó Carago! Um Cavalo que Fala!”.
Era Abelardo, um Cavalo sim, mas em vez de falar calava.
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